Sem mais
Não podia acreditar que ele me traia daquela forma. Não uma
traição carnal ou física, daquelas em que cedemos aos nossos desejos menos
prodigiosos.
Não. Ele traia minha confiança, minha intuição.
Olhou fixamente nos meus olhos e deliberadamente, sem receio de deixar que a sujidão de uma alma velha e rota transparecesse, sem maiores problemas ou dificuldades, disse:
- Meu bem?
- anh?
- Sabe aquela erva cidreira que plantou lá no jardim?
- Sei.
- Ela está deixando nosso jardim tão feio! É feito mato
crescendo em meio às flores...
Observei.
- Poderíamos plantar orquídeas lá, ou margaridas. Ah!
Margaridas são tão vistosas...
Como se ele não soubesse, ou preferisse desconhecer, nossa própria
feíura. Estamos a enfear esse mundo, essa casa, nossa cidade, a própria vida...
Respirei.
- Meu bem, você sabe que as ervas são boas pra mim.
Nos dias
de inverno, principalmente, quando nada mais pode me aquecer o corpo e me falta
ar nos pulmões...
Pensei em recuar e mandarem limpar o jardim. Talvez plantar
uma muda só, num pequeno vaso, lá no fundo do quintal.
-Pense bem. Podemos plantar as flores mais lindas que você
imaginar nesse jardim e todos o acharão o jardim mais lindo que já existiu.
Não respondi.
Fui ao jardim. Colhi algumas folhas da minha erva chá
favorita e fiz. Ainda não é inverno, mas ele aqueceu minhas entranhas de uma
maneira que ninguém mais poderia fazer.
- Meu bem! Plante suas margaridas no jardim externo. Aquele
que fica no passeio da casa. Lá todo o povo poderá apreciar a beleza das suas
flores de verão.
E deixe, que da feíura de cá de dentro cuido eu.
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